E era eu um habitante de Creta
Aquando da minha passagem em 1984/6 pelo 10º e 11º anos na saudosa Escola Industrial e Comercial da Figueira da Foz, hoje com o nome de Escola Secundária Bernardino Machado, tive o enorme privilégio e sorte de ter apanhado o famoso professor Marcos Viana, já na altura com mais de 70 anos. Era o meu professor de Português e se na altura ele já via mal e tinha ainda pior audição, ele compensava com os seus imensos conhecimentos em latim, grego, português arcaico, história de Portugal e falava fluentemente francês além de dominar o castelhano, alemão e inglês.
Mas nós naquela idade, que interessava se ele era o professor mais respeitado entre os seus pares? Era de aproveitar e fazer nas suas aulas o que nem pensaríamos em fazer noutras aulas com outros professores! Como via mal, fumávamos na sala e quando ele percebia que havia algo branco subindo pelo ar, desculpávamos-nos com o nevoeiro que entrava pela janelas. Não havia respeito algum naquelas salas e ele cansava-se de nos chamar a todos habitantes de Creta. A princípio nem nos apercebíamos que nos estava a chamar cretinos, mas depois passámos a adorar tal tratamento. Claro que a disciplina não era daquelas mais empolgantes ou apelativas para quem andava na área de tecnologias num curso de electrotecnia, mas também não era razão para deixarmos os tectos e paredes forrados com papel amassado a saliva e disparado pelas canetas bic ou similares. Aquelas aulas eram um caos completo de rebeldia e falta de educação.
Mas havia algo naquele professor Marcos Viana que nos deixava a todos completamente imobilizados e hipnotizados, em que nem um pio se ouvia em toda a sala! Era nas alturas em que para explicar um conceito, uma personagem dos Lusíadas ou do Gil Vicente, ele recorria aos seus enormes dotes de historiador com livros publicados. Quando o homem falava dum Rei ou dum reinado, explicando os porquês de certa acção ou situação e muitas vezes contrapondo a história oficial com as suas teorias devidamente fundamentadas, nós parecíamos uma plateia em silêncio assistindo a um belo filme onde imagens cheias de movimento e cor percorriam todo o écran e nós não podíamos desviar os olhos sob risco de perdermos algo importante. Tentem imaginar uma turma com alguns 20 selvagens, onde apenas dois deles eram miúdas, pensando apenas em flippers, snookers, jogar à bola para as Abadias, elogiando o Benfica e malhando no Sporting, falando nas fintas do Futre e no Tal Canal do Herman, sempre propondo desafios uns aos outros para andarem à porrada, e naquelas aulas de Português todos quietinhos bebendo sofregamente aquelas histórias que o professor nos dava com tanto prazer. Cada vez que o Marcos Viana nos dava uma dessas sessões que até nem eram frequentes, tínhamos ganho a semana!
Foi nesta disciplina que comecei a perceber a vantagem em poder ter acesso ao código, em poder manusear o código fonte e nem sabia o que era informática! Os exames eram sempre marcados com o nosso acordo para a segunda aula da semana. Na primeira aula da semana, tínhamos por hábito saudável de lhe levar emprestados os enunciados dos pontos, fotocopiá-los e devolve-los na mesma aula, sem que ele percebesse o que se passava. Dois dias depois, aquando do exame, já tínhamos os pontos completamente preenchidos ainda antes de ele nos entregar o ponto, mas por uma questão de respeito, mantínhamos o silêncio sobre esse pormenor. Deixávamos-nos ficar em silêncio por uns 10 minutos e ele invariavelmente adormecia. Depois fazíamos o que nos dava na telha mas em silêncio e perto do fim da aula, lá entregávamos o ponto todo certinho e limpinho. Nunca menos dum 17 era algo de garantido em Português. Bom, houve um colega que teve 16 mas ele era um imigrante francês e falava pessimamente português. Enquanto que em Português com outros professores, ter um 14 era algo de reservado a apenas alguns felizardos, o resto era corrido de 11 para baixo...
Na entrega do ponto já corrigido, o professor tinha o salutar hábito de colocar a pontuação de cada resposta ao lado dela, numa margem e a lápis. Bastava-nos somar todas aquelas pontuações para termos um valor até 100 que correspondia à percentagem que tínhamos nesse exame. Ora bastava apagar as pontuações mais baixas que ele nos tinha dado e alterá-las para um outro valor superior, alertar o professor para o erro aritmético das somas e tínhamos alguns mais valores, passando dum 17 para 19 sem problemas.
Não se se perceberam a coisa mas recapitulo: tínhamos acesso ao enunciado atempadamente, fazíamos o ponto todos juntos em comunidade, recebíamos depois o resultado e tínhamos acesso à pontuação, podíamos alterar essa pontuação ao nosso gosto, e ficávamos com o resultado. Algo muito parecido com o software open source, o ter acesso ao código fonte, poder alterá-lo em nosso benefício.
Fica aqui um pedido de desculpas a esse grande professor pelo que lhe fizémos, e um agradecimento por me ter feito perceber das vantagens de termos acesso às fontes....
E ainda alguem tem dúvidas da superioridade dos softwares livres?
Mas nós naquela idade, que interessava se ele era o professor mais respeitado entre os seus pares? Era de aproveitar e fazer nas suas aulas o que nem pensaríamos em fazer noutras aulas com outros professores! Como via mal, fumávamos na sala e quando ele percebia que havia algo branco subindo pelo ar, desculpávamos-nos com o nevoeiro que entrava pela janelas. Não havia respeito algum naquelas salas e ele cansava-se de nos chamar a todos habitantes de Creta. A princípio nem nos apercebíamos que nos estava a chamar cretinos, mas depois passámos a adorar tal tratamento. Claro que a disciplina não era daquelas mais empolgantes ou apelativas para quem andava na área de tecnologias num curso de electrotecnia, mas também não era razão para deixarmos os tectos e paredes forrados com papel amassado a saliva e disparado pelas canetas bic ou similares. Aquelas aulas eram um caos completo de rebeldia e falta de educação.
Mas havia algo naquele professor Marcos Viana que nos deixava a todos completamente imobilizados e hipnotizados, em que nem um pio se ouvia em toda a sala! Era nas alturas em que para explicar um conceito, uma personagem dos Lusíadas ou do Gil Vicente, ele recorria aos seus enormes dotes de historiador com livros publicados. Quando o homem falava dum Rei ou dum reinado, explicando os porquês de certa acção ou situação e muitas vezes contrapondo a história oficial com as suas teorias devidamente fundamentadas, nós parecíamos uma plateia em silêncio assistindo a um belo filme onde imagens cheias de movimento e cor percorriam todo o écran e nós não podíamos desviar os olhos sob risco de perdermos algo importante. Tentem imaginar uma turma com alguns 20 selvagens, onde apenas dois deles eram miúdas, pensando apenas em flippers, snookers, jogar à bola para as Abadias, elogiando o Benfica e malhando no Sporting, falando nas fintas do Futre e no Tal Canal do Herman, sempre propondo desafios uns aos outros para andarem à porrada, e naquelas aulas de Português todos quietinhos bebendo sofregamente aquelas histórias que o professor nos dava com tanto prazer. Cada vez que o Marcos Viana nos dava uma dessas sessões que até nem eram frequentes, tínhamos ganho a semana!
Foi nesta disciplina que comecei a perceber a vantagem em poder ter acesso ao código, em poder manusear o código fonte e nem sabia o que era informática! Os exames eram sempre marcados com o nosso acordo para a segunda aula da semana. Na primeira aula da semana, tínhamos por hábito saudável de lhe levar emprestados os enunciados dos pontos, fotocopiá-los e devolve-los na mesma aula, sem que ele percebesse o que se passava. Dois dias depois, aquando do exame, já tínhamos os pontos completamente preenchidos ainda antes de ele nos entregar o ponto, mas por uma questão de respeito, mantínhamos o silêncio sobre esse pormenor. Deixávamos-nos ficar em silêncio por uns 10 minutos e ele invariavelmente adormecia. Depois fazíamos o que nos dava na telha mas em silêncio e perto do fim da aula, lá entregávamos o ponto todo certinho e limpinho. Nunca menos dum 17 era algo de garantido em Português. Bom, houve um colega que teve 16 mas ele era um imigrante francês e falava pessimamente português. Enquanto que em Português com outros professores, ter um 14 era algo de reservado a apenas alguns felizardos, o resto era corrido de 11 para baixo...
Na entrega do ponto já corrigido, o professor tinha o salutar hábito de colocar a pontuação de cada resposta ao lado dela, numa margem e a lápis. Bastava-nos somar todas aquelas pontuações para termos um valor até 100 que correspondia à percentagem que tínhamos nesse exame. Ora bastava apagar as pontuações mais baixas que ele nos tinha dado e alterá-las para um outro valor superior, alertar o professor para o erro aritmético das somas e tínhamos alguns mais valores, passando dum 17 para 19 sem problemas.
Não se se perceberam a coisa mas recapitulo: tínhamos acesso ao enunciado atempadamente, fazíamos o ponto todos juntos em comunidade, recebíamos depois o resultado e tínhamos acesso à pontuação, podíamos alterar essa pontuação ao nosso gosto, e ficávamos com o resultado. Algo muito parecido com o software open source, o ter acesso ao código fonte, poder alterá-lo em nosso benefício.
Fica aqui um pedido de desculpas a esse grande professor pelo que lhe fizémos, e um agradecimento por me ter feito perceber das vantagens de termos acesso às fontes....
E ainda alguem tem dúvidas da superioridade dos softwares livres?
9 comentários:
21 novembro, 2007 22:47
Anos mais tarde, foi possível constatar que o Marcos Viana deixou vários seguidores das suas boas práticas da partilha de fontes...
21 novembro, 2007 23:15
Essa história não me parece muito edificante ;) e até acho que mostra um lado negativo do open source: quando se dá demasiada liberdade (ou acesso ao código fonte) as pessoas não dão valor e utilizam em seu próprio benefício (como é o caso de aldrabar as notas ou usar o código aberto para criar programas pagos sem devolver nada à comunidade...)
BTW Que curioso descobrir ao fim destes anos todos que és (ou viveste) na Figueira da Foz (sempre achei que eras de Setúbal :) )
21 novembro, 2007 23:45
Sou de lá, vivo agora junto a Lisboa, também vivi em Setúbal perto da Luísa Todi, tal como passei grandes temporadas em Alfeite e Vila Franca, coisas da Marinha...
E já vivi embarcado....
E porque achavas que eu era de Setúbal?
22 novembro, 2007 00:03
Por causa da Neosub ser de Setúbal ;)
22 novembro, 2007 06:37
Há coisas que não se contam :o)...
22 novembro, 2007 16:52
Grande analogia.
Parabéns.
Gostei imenso do texto e o seu fim pedagögico.
22 novembro, 2007 19:44
Andei na mesma escola, talvez uns cinco ou seis anos antes, conheci o professor, pessoa competente e boa, infelizmente, a ordem era outra e o respeitinho muito lindo.
Fico satisfeito por saber que somos conterrâneos.
Bem-haja
FS
22 novembro, 2007 20:08
E para não alongar o artigo, não contei nem um décimo do que lhe fazíamos. Éramos mesmo uns javardos com ele!
Mas a parte de lhe roubarmos os enunciados dos pontos, fotocopiarmos e devolvermos novamente o enunciado, sem que ele nunca se apercebesse era obra! :)
22 novembro, 2007 23:08
Caramba! Estas histórias dos bancos escolares rende muita coisa. E esta relação entre Creta e cretinos, então, foi demais!
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