O Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Luís Amado, garantiu que vai ratificar o Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa até ao fim deste ano de 2007, e com vontades semelhantes estarão Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Mas afinal o que é o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, quais são as suas consequências para os países que falam o Português e como é que as pessoas o vêem??
O
Português é a terceira língua mais falada no mundo ocidental e a sexta em todo o mundo, sendo o idioma oficial do Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste, e ainda é falada na antiga Índia Portuguesa, além de ter estatuto oficial na União Europeia, Mercosul e na União Africana. Há ainda cerca de vinte línguas crioulas de base portuguesa além de ser língua minoritária em Andorra, Luxemburgo e em outros países europeus, africanos e americanos. É uma língua românica que tem sofrido uma evolução histórica, sendo influenciada por outros idiomas e dialectos. Hoje, a língua portuguesa compreende vários dialectos e subdialectos, falares e subfalares, muitas vezes bastante distintos, além de dois padrões internacionalmente reconhecidos que são o português brasileiro e português europeu. Hoje em dia, o português é a única língua falada por mais de cem milhões de pessoas com duas ortografias oficiais e é essa a situação a que o Acordo Ortográfico de 1990 pretende acabar. Devo recordar que já em 1945 tinha sido tentado uma certa unificação entre Portugal e Brasil, e que Portugal chega a implementar ao contrário do Brasil.
Uma coisa muito importante a esclarecer é que o Acordo é para a unificação da ortografia da Língua Portuguesa e não da Língua Portuguesa! Uma
explicação mais aprofundada é dada por José Luiz Fiorin, professor de Linguística da USP:
"A língua é uma coisa viva, mutante, que varia de acordo com a província, com os enunciados e com as necessidades dos falantes daquela língua. Não dá para uniformizar a pronúncia, o estilo, a poesia da língua. O que dá para unificar é a grafia, a representação gráfica e é exatamente isso que o acordo propõe.
...
A ortografia não reflete exatamente o que é uma língua. A ortografia é uma convenção, regida por lei, que retrata graficamente as palavras de uma língua. Agora a língua mesmo é bem mais que isso. A gente fala, a gente se expressa, a gente ama, a gente se desespera e a gente mostra o que é em Português. A língua é isso, é essa tradução da identidade do povo. A ortografia é só a representação gráfica disso tudo. E ela não é capaz de refletir com exatidão. A gente fala “di dia”, e a grafia correta é “de dia”. A gente fala “lobu”, e a grafia é “lobo”. Então nem sempre a grafia é a representação mais fiel da língua, fora os sotaques, as entonações, as variações regionais, tudo isso. Uma reforma radical da língua apontaria na direção dessas mudanças. Adaptar a língua escrita à língua falada."
Em termos práticos, a unificação da ortografia implica que 1.6% do vocabulário de Portugal seja modificado enquanto que o vocabulário no Brasil sofre apenas 0.45% de alterações, mas apesar destas mudanças ortográficas, serão conservadas as pronúncias típicas de cada país. O alfabeto passa a ter 26 letras ganhando o "K", o "Y" e o "W"; cai o "h" como em "húmido" para ficar úmido, desaparecem o "c" e o "p" nas palavras onde ele não é pronunciado como "acção", "acto", "baptismo" ou "óptimo". Parece que o Presidente do Conselho Marcelo Caetano já se preparava para eliminar estas consoantes mudas quando se deu a revolução em 1974!
No vocabulário brasileiro desaparece o acento circunflexo em palavras como "abençôo", "vôo", "crêr", "lêr" e outras. Desaparece também o trema em palavras como "lingüíça", "freqüencia" ou "qüinqüénio", coisa que em Portugal há muito que não se usava, além do acento agudo nos ditongos abertos como "assembléia", "idéia" ou "jibóia".
O que deve ficar claro com este Acordo Ortográfico é que ele muda a grafia de certas palavras, a maneira como se escrevem mas não altera a pronúncia de nenhuma palavra! Ele não cria nem elimina palavras, não tem a ver com as variações de uso ou significado delas, não elimina em nenhuma palavra qualquer letra que se leia numa pronúncia culta da língua, não estabelece regras de sintaxe, não interfere com a coexistência ou com as regras de normas linguísticas regionais, tem a ver somente com a maneira de escrever as palavras! Com o Acordo Ortográfico, a grafia das palavras passa a ser regulamentada nos países de língua portuguesa por uma única norma.
Sobre este acordo pedi a dois tradutores de software livre, a sua opinião sobre as possíveis vantagens ou desvantagens que poderão advir com a implementação do Acordo Ortográfico. Os entrevistados são o
André Noel (
AN) do Projecto de tradução Ubuntu para o português brasileiro (pt_BR) e o
António Dias (
AD) das traduções do projecto Mozilla para português europeu (pt_PT). Ao contrário do António Dias que confessou estar um pouco reticente quanto ao Acordo, o André Noel está bem mais optimista e consciente que o Acordo será apenas para unificar a escrita entre os países de língua portuguesa. Por curiosidade, o António Dias escreveu uma proposta para uma nova ortografia que se encontra disponível para
consulta no seu site.
Tux Vermelho: -O que sabes sobre o Acordo Ortográfico?
AN: -Não estou profundamente por dentro do assunto, mas sei que a idéia é unificar a escrita entre os países de língua portuguesa.
AD: -Muito pouco. Sei que já devia ter entrado em vigor em todos os países da CPLP, descontando os necessários períodos de transição, mas que há alguns entraves burocráticos na sua adopção plena -- e talvez Portugal esteja a ser o país que mais resistência tem apresentado a isso.
Sei também quais as alterações mais notáveis para a ortografia do português europeu, que são quase todas pacíficas para mim, embora tenha algumas dúvidas quanto à razão de ser de outras.
Tux Vermelho: -Achas que o acordo seria perigoso no aspecto de acabar com os sotaques e variações que existem em todos os países que falam português?
AN: -De forma alguma. A escrita seria unificada, porém cada país continua com suas palavras específicas e com sua forma de falar. Acredito que a mudança gere dúvidas e desafios, mas nada muito pesado.
AD: -Não. O acordo, ao que sei, não tem qualquer influência na linguagem falada, apenas na ortografia.
Tux Vermelho: -Que benefícios poderia trazer, especialmente no teu trabalho de traduções?
AN: -Na minha área (informática) os benefícios seriam muito grandes. A maioria dos programas são feitos em inglês e depois traduzidos para inúmeras línguas. Com o acordo, ainda teríamos times de tradução diferentes para os diferentes países de língua portuguesa, porém muito trabalho poderia ser aproveitado de um país para o outro, necessitando apenas de revisão em termos específicos do país e não na grafia.
Na tradução do Ubuntu, por exemplo, a tradução para português brasileiro é a sexta mais completa. A última versão do GNOME foi lançada com a interface 100% traduzida para português brasileiro. Seria muito bom se isso pudesse ser compartilhado de forma fácil com outros países.
AD: -O acordo ortográfico terá uma influência muito limitada nas traduções do projecto Mozilla ou, já agora, qualquer outra tradução. Basicamente, bastará rever a tradução para emendar as palavras alteradas pelo acordo. Com um pouco de imaginação, isso até poderá ser feito automaticamente.
Uma das grandes vantagens do acordo será poder ter um único corrector ortográfico para os dois sabores da língua portuguesa.
Tux Vermelho: -Que dirias àqueles que estão reticentes com o acordo?
AN: -Toda mudança gera grande espectativa. Mas quando tratamos de países que possuem uma riqueza de material escrito (literatura, tecnologia, etc.), seria muito vantajoso esse acordo.
AD: -Não sei, principalmente porque mesmo eu tenho algumas dúvidas quanto à necessidade da sua implementação. Penso que o grande argumento a favor da adopção do acordo será que as alterações são mínimas e, a maior parte delas, com alguma lógica.
As minhas reticências quanto à necessidade deste acordo prendem-se maioritariamente com o impacto financeiro que este irá ter, não só nas editoras e serviços do estado (que são os implicados mais óbvios), mas em toda a sociedade, pois isso implicará a alteração de letreiros, avisos, manuais técnicos, etc., que terá o seu custo. Esse custo seria negligenciável se as vantagens do acordo fossem evidentes, como uma maior facilidade na aprendizagem da escrita. No entanto, as alterações são tão poucas e inconsistentes que essa vantagem não existe.
Tux Vermelho: -Algo mais que queiras opinar?
AN: -Participo e acompanho o Planeta GNU/Linux Brasil (planeta.gnulinuxbrasil.org), onde pude ter um contato com irmãos lusitanos. Ali vejo as vantagens de ter um canal aberto entre países de língua portuguesa. Acredito que cada passo em prol de uma aproximação de tais países seja uma grande conquista.
AD: -Gostaria de dizer a todas as editoras, brasileiras ou portuguesas, que pensam que o com o acordo ortográfico o mercado se alargará para incluir todos os falantes da nossa língua, que pensem de novo. O português do Brasil é diferente do português europeu em mais do que a ortografia. Aliás, a ortografia é apenas um pormenor sem importância, já que a verdadeira diferença está no vocabulário e na construção das frases, que é já algo diferente no uso comum mas bastante diferente no português técnico. Muitos portugueses preferem ler manuais técnicos em inglês do que a sua tradução em português do Brasil precisamente porque preferem ler "file" e pensar "ficheiro" ou ler "screen" e pensar "ecrã" do que ler "arquivo" ou "tela" e ter que parar para pensar o que é isso. E isto são os portugueses, que até estão algo acostumados a ouvir o português do Brasil, por culpa das séries brasileiras ou da música. Imagino que para o brasileiro comum, que tem muito menos contacto com a nossa versão da língua, os termos "ficheiro" e "ecrã" soem ainda mais estranhos.
Suponho que este problema não se põe na literatura ou na arte -- nunca tive qualquer problema em entender as canções ou as telenovelas do Brasil ou os livros do Jorge Amado na sua versão original, e acho que todas as pessoas da minha geração leram banda desenhada em brasileiro ("pernilongo" para designar "mosquito" é um daqueles termos que ficará para sempre gravado na minha imaginação). Mas sei que cada vez que leio um livro técnico em português do Brasil fico a pensar que o preferia ter lido em inglês.
Quanto ao acordo propriamente dito, acho que só valeria a pena se fosse realmente radical e transformasse a nossa linguagem escrita em algo bastante mais perto da linguagem falada, eliminando as suas inconsistências e melhorando a facilidade com que se aprende a escrever.
Por coincidência, há uns anos
escrevi uma "proposta para uma nova ortografia da língua portuguesa" [1], que também tem os seus erros e inconsistências, mas se o presente acordo fosse algo nesta linha de objectivos, talvez eu o apoiasse com mais empenho do que o faço hoje. Por outro lado, com estes objectivos talvez a diferença ortográfica entre o português europeu e o do Brasil se acentuasse, em vez de diminuir...
[1] é apenas um exercício de uma mente desocupada -- não é para levar a sério!
É inevitável haver mudanças na ortografia, a língua evolui e por arrasto, a ortografia tende a simplificar-se, a evoluir. Claro que sempre que há mudanças, há desconforto, principalmente entre as pessoas que sempre conheceram a mesma maneira de escrever. Convém lembrar que ainda não foi há muito tempo que se escrevia farmácia com "ph" e se tiverem oportunidade de ler um livro que tenha sido imprimido pelo princípio do século passado, irão encontrar uma ortografia bem diferente da actual. Talvez não seja má ideia começarmos a habituarmos-nos a escrever segundo as novas regras...
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Fontes:
Wikipedia,
Lusofonia,
Acordo Ortográfico,
Leonardo Fontenelle,
Portugal Diário